Sorvete e Rock'nRoll

fevereiro 16, 2016





Aquele pote de sorvete na sacolinha frágil de mercado gelava sua mão enquanto o seu coração fervilhava.

Mais uma vez.
De novo aquela mistura homogênea de raiva e mágoa em fogo alto banhava tudo por dentro.

Subiu as escadas e foi pro terraço. Sentou num degrau junto à porta e conferiu os fumantes que já ocupavam seus postos na sacada.
Colocou os fones.

Era outro casamento. Dos grandes.
A "doces finos" faltou novamente. Tem sido assim nos últimos dois meses desde que ficara grávida.

O chef chamou os outros três confeiteiros  pra repassar o pedido e repartir a tarefa.
Ela não fora chamada.
De novo.
Sempre o mesmo.

Ela já se dispôs.
Ela conhecia.
Ela era boa no que fazia.
Mas a resposta era sempre a mesma
- A receita está pronta! Se precisar, te aviso.

Não avisava. Nunca.

Digitou o telefone que sabia de cor. Sua prima. E desabafou com sua única confidente naquela cidade.
Contida.

Meio pote já tinha ido embora quando o celular assobiou.
Sua prima com conselhos de Jung que pedira ao namorado recém-formado.

O termômetro-vareta agora explodiria em contato com a temperatura do coração fervilhante!

- Foi por apoio, não por causa de conselhos de milhares de páginas!!
Só pensou.

Aumentou o volume.
O John Cooper gritava por ela em Monster. Nada melhor que um bom Rock com vocal agressivo nessas horas.

Precisava ser lembrada de quando fez aquele bolo de noiva sozinha mesmo quando foi prometido todo o suporte e auxílio. Seis andares!
Precisava ser lembrada do evento em que driblou fornecedores e clientes para cumprir mais um prazo impossível de mais uma socialite.
Precisava ser lembrada de que há mais de um ano metade do salário ainda cobre as parcelas daquele curso de gastronomia fora. Mal sobra alguma coisa.

Silêncio.

Ela só não quer passar a acreditar que não é capaz.
Que é pior que todos os frequentadores daquela cozinha que ela tanto repudia - com sorriso morno e sem tempero.

Tempero.

Nem as cebolas a fazem chorar.
Ela não chora. Nem lembra mais o motivo.
(Talvez o estoque de lágrimas tenha virado vapor após a morte do seu pai)

Olhou o relógio.
Ainda tinha tempo até voltar a pôr a mão na massa.

Aumentou o volume. E encheu a colher de sorvete.

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